21.10.09

Lampião no Cariri


Lampião dificilmente realizava ataques no Ceará, especialmente no Cariri, pois, segundo o próprio cangaceiro, não tinha inimigos no estado e respeitava a região por ser a terra de Padre Cícero, de quem era devoto. Se por um lado não tinha inimigos cearenses, por outro sobravam "coiteiros", como eram designados aqueles que davam abrigo e proteção aos cangaceiros. O principal "coiteiro" de Lampião no Cariri era o Coronel Isaias Arruda, do município de Aurora. Aliás, foi de Aurora que Lampião partiu para seu mais ousado (e fracassado), plano: assaltar a agência do Banco do Brasil de Mossoró, Rio Grande do Norte.

Em 13 de junho de 1927, os cangaceiros invadiram Mossoró, mas foram recebidos a bala, e após cerca de quarenta minutos de intenso combate, bateram em retirada rumo a Limoeiro do Norte no Ceará. Fortalecida após a vitória, a Polícia potiguar, com apoio das Polícias da Paraíba e do Ceará, partiu no encalço do bando. Acuado, o bando rumou para o Cariri. Houve confrontos nas localidades de Riacho do Sangue (Jaguaretama), Cacimbas (Icó), Ribeiro e Ipueiras (os últimos em Aurora). O bando seguiu para a Serra do Góes (Caririaçu), entretanto, sendo informado por um simpatizante que o município estava entricheirado esperando pela chegada dos cangaceiros, Lampião decidiu ir para Milagres. De lá foi para Piancó na Paraíba e depois para Pernambuco, conseguindo finalmente despistar as forças policiais.

Lampião esteve em Juazeiro do Norte uma única vez, no ano de 1926. Naquele ano, a Coluna Prestes percorria o Brasil desafiando o Governo Federal. Para combatê-la, foram criados os chamados Batalhões Patrióticos. O Coronel Góis Monteiro (ao lado), chefe do Estado-Maior e responsável por combater a Coluna, recrutava cangaceiros para auxiliar as tropas militares, em troca lhes dava anistia. Floro Bartolomeu, líder do Batalhão Patriótico de Juazeiro, ciente de que Prestes e Lampião já haviam se enfrentado uma vez e que estavam em território cearense, enviou carta para Lampião convidando-o a se juntar ao Batalhão Patriótico e oferecendo-lhe, em troca, a anistia do Governo Federal, a patente de Capitão e o encontro com Padre Cícero. Entretanto, o sacerdote não sabia da aliança.

Em 04 de março de 1926, Lampião e outros 49 cangaceiros chegaram a Juazeiro com o intuito de servir ao Batalhão Patriótico. Floro Bartolomeu, que estava muito doente em virtude de angina, se encontrava no Rio de Janeiro, onde faleceu quatro dias após. Coube a Pedro de Albuquerque Uchoa, na época o único funcionário público federal no municípo, entregar armas, anistia e a patente de Capitão ao Rei do Cangaço. Pedro de Albuquerque não tinha competência para tais atos, mas mesmo assim rabiscou em uma folha de papel que os cangaceiros tinham sido anistiados e que a partir daquele dia Lampião estaria a serviço do Governo na condição de Capitão. Tempo depois, ao ser questionado sobre o fato, Pedro de Albuquerque disse que na frente de Lampião assinaria qualquer coisa que o cangaceiro exigisse, até a destituição do Presidente da República!

Ao encontrarem Padre Cícero, Lampião e seus homens se ajoelharam, mas foram supreendidos ao ouvir o sacerdote aconselhá-los a abandonar o cangaço. Vendo que tinha sido vítima de uma farsa, pois não seria anistiado e Padre Cícero não o tinha convocado, Lampião deixou Juazeiro levando as armas do Batalhão Patriótico e sem jamais voltar a enfrentar a Coluna Prestes.

Bibliografia:
*BORGES, Raimundo de Oliveira. Serra de São Pedro: História de Caririaçu. Fortaleza: ABC Editora: 2009.
*COUTINHO, Lourival. O General Góes Depõe... Rio de Janeiro: Editora Coelho Branco, 1956.
*SOUZA, Anildomá Willans. Lampião: Nem herói nem bandido... A história. Serra Talhada: GDM Gráfica, 2006.
*TAVARES, Amarílio Gonçaves. Aurora: História e Folclore. Fortaleza: IOCE, 1993.

Micael François

14.10.09

Entrevista de Lampião

Em 1926, quando esteve de passagem por Juazeiro, Lampião concedeu entrevista ao médico Dr. Otacílio Macêdo. Segue a entrevista em sua íntegra, em breve traremos mais detalhes sobre a passagem do "Rei do Cangaço" pelo Cariri.

A entrevista teve dois momentos. O primeiro foi travado o seguinte diálogo:
OM: Que idade tem?
L: Vinte e sete anos.
OM: Há quanto tempo está nesta vida?
L: Há nove anos, desde 1917, quando me ajuntei ao grupo do Senhor Pereira.
OM: Não pretende abandonar a profissão?
L: Se o senhor estiver em um negócio, e for se dando bem com ele, pensará porventura em abandoná-lo? Pois é exatamente o meu caso. Porque vou me dando bem com este "negócio", ainda não pensei em abandoná-lo.
OM: Em todo o caso, espera passar a vida toda neste "negócio"?
L: Não sei... talvez... preciso porém "trabalhar" ainda uns três anos. Tenho alguns "amigos" que quero visitá-los, o que ainda não fiz, esperando uma oportunidade.
OM: E depois, que profissão adotará?
L: Talvez a de negociante.
OM: Não se comove a extorquir dinheiro e a "variar" propriedades alheias?
L: Oh! mas eu nunca fiz isto. Quando preciso de algum dinheiro, mando pedir "amigavelmente" a alguns camaradas.
Nesta altura chegou o 1° tenente do Batalhão Patriótico de Juazeiro, e chamou Lampião para um particular. De volta avisou-nos o facínora:
L: Só continuo a fazer este "depoimento" com ordem do meu superior. (Sic!)
OM: E quem é seu superior?
L: (Silêncio).
OM: Está direito...
Quando voltamos, algumas horas depois, à presença de Lampião, já este se encontrava instalado em casa do historiador brasileiro João Mendes de Oliveira.
Rompida, novamente, a custo, a enorme massa popular que estacionava defronte à casa, penetramos por um portão de ferro, onde veio Lampião ao nosso encontro, dizendo:

L: Vamos para o sótão, onde conversaremos melhor.
Subimos uma escadaria de pedra até o sótão. Aí notamos, seguramente, uns quarenta homens de Lampião, uns descansando em redes, outros conversando em grupos; todos, porém, aptos à luta imediata: rifle, cartucheiras, punhais e balas...
OM: Desejamos um autógrafo seu, Lampião.
L: Pois não.
Sentado próximo de uma mesa, o bandido pegou da pena e estacou, embaraçado.
L: Que qui escrevo?
OM: Eu vou ditar.
E Lampião escreveu com mãos firmes, caligrafia regular.
"Juazeiro, 6 de março de 1926
Para... e o Coronel...
Lembrança de EU.
Virgulino Ferreira da Silva.
Vulgo Lampião".

Os outros facínoras observavam-nos, com um misto de simpatia e desconfiança. Ao lado, como um cão de fila, velava o homem de maior confiança de Lampião, Sabino Gomes, seu lugar-tenente, mal-encarado.

L: É verdade, rapazes! Vocês vão ter os nomes publicados nos jornais em letras redondas...
A esta afirmativa, uns gozaram o efeito dela, porém parece que não gostaram da coisa.
OM: Agora, Lampião, pedimos para escrever os nomes dos rapazes de sua maior confiança.
L: Pois não. E para não melindrar os demais companheiros, todos me merecem igual confiança, entretanto poderia citar o nome dos companheiros que estão há mais tempo comigo.
E escreveu.
1 - Luiz Pedro
2 - Jurity
3 - Xumbinho
4 - Nuvueiro
5 - Vicente
6 - Jurema
E o estado maior:
1 - Eu, Virgulino Ferreira
2 - Antônio Ferreira
3 - Sabino Gomes.
Passada a lista para nossas mãos fizemos a "chamada" dos cabecilhas fulano, cicrano, etc.
Todos iam explicando a sua origem e os seus feitos. Quando chegou a vez de "Xumbinho", apresentou-se-nos um rapazola, quase preto, sorridente, de 18 anos de idade.

OM: É verdade, "Xumbinho"! Você, rapaz tão moço, foi incluído por Lampião na lista dos seus melhores homens... Queremos que você nos ofereça uma lembrança...
"Xumbinho" gozou o elogio. Todo humilde, tirou da cartucheira uma bala e nos ofereceu como lembrança...
OM: No caso de insucesso com a polícia, quem o substituirá como chefe do bando?
L: Meu irmão Antônio Ferreira ou Sabino Gomes...
OM: Os jornais disseram, ultimamente, que o tenente Optato, da polícia pernambucana, tinha entrado em luta com o grupo, correndo a notícia oficial da morte de Lampião.
L: É, o tenente é um "corredor", ele nunca fez a diligência de se encontrar "com nós"; nós é que lhe matemos alguns soldados mais afoitos.
OM: E o cel. João Nunes, comandante geral da polícia de Pernambuco, que também já esteve no seu encalço?
L: Ah, este é um "velho frouxo", pior do que os outros...
Neste momento chegou ao sótão uma "romeira" velha, conduzindo um presente para Lampião. Era um pequeno "registro" e um crucifixo de latão ordinário. "Velinha", apresentando as imagens: "Está aqui, seu coroné Lampião, que eu truve para vomecê".
L: Este santo livra a gente de balas? Só me serve si for santo milagroso.
Depois, respeitosamente, beijou o crucifixo e guardou-o no bolso. Em seguida tirou da carteira um nota de 10$000 e gorgetou a romeira.
OM: Que importância já distribuiu com o povo do Juazeiro?
L: Mais de um conto de réis.
Lampião começou por identificar-se:
L: Chamo-me Virgulino Ferreira da Silva e pertenço à humilde família Ferreira do Riacho de São Domingos, município de Vila Bela. Meu pai, por ser constantemente perseguido pela família Nogueira e em especial por Zé Saturnino, nossos vizinhos, resolveu retirar-se para o município de Águas Brancas, no estado de Alagoas. Nem por isso cessou a perseguição. Em Águas Brancas, foi meu pai, José Ferreira, barbaramente assassinado pelos Nogueira e Saturnino, no ano de 1917. Não confiando na ação da justiça pública, por que os assassinos contavam com a escandalosa proteção dos grandes, resolvi fazer justiça por minha conta própria, isto é, vingar a morte do meu progenitor. Não perdi tempo e resolutamente arrumei-me e enfrentei a luta. Não escolhi gente das famílias inimigas para matar, e efetivamente consegui dizimá-las consideravelmente.
Sobre os grupos a que pertenceu:
L: Já pertenci ao grupo de Sinhô Pereira, a quem acompanhei durante dois anos. Muito me afeiçoei a este meu chefe, porque é um leal e valente batalhador, tanto que se ele ainda voltasse ao cangaço iria ser seu soldado.
Sobre suas andanças e seus perseguidores:
L: Tenho percorrido os sertões de Pernambuco, Paraíba e Alagoas, e uma pequena parte do Ceará. Com as polícias desses estados tenho entrado em vários combates. A de Pernambuco é disciplinada e valente, e muito cuidado me tem dado. A da Paraíba, porém, é uma polícia covarde e insolente. Atualmente existe um contingente da força pernambucana de Nazaré que está praticando as maiores violências, muito se parecendo com a força paraibana.
Referindo-se a seus coiteiros, Lampião esclareceu:
L: Não tenho tido propriamente protetores. A família Pereira, de Pajeú, é que tem me protegido, mais ou menos. Todavia, conto por toda parte com bons amigos, que me facilitam tudo e me consideram eficazmente quando me acho muito perseguido pelos governos. Se não tivesse de procurar meios para a manutenção dos meus companheiros, poderia ficar oculto indefinidamente, sem nunca ser descoberto pelas forças que me perseguem. De todos meus protetores, só um traiu-me miseravelmente. Foi o coronel José Pereira Lima, chefe político de Princesa. É um homem perverso, falso e desonesto, a quem durante anos servi, prestando os mais vantajosos favores de nossa profissão.
A respeito de como mantém o grupo:
L: Consigo meios para manter meu grupo pedindo recursos aos ricos e tomando à força aos usuários que miseravelmente se negam de prestar-me auxílio.
Se estava rico?
L: Tudo quanto tenho adquirido na minha vida de bandoleiro mal tem chegado para as vultuosas despesas do meu pessoal - aquisição de armas, convindo notar que muito tenho gasto, também, com a distribuição de esmolas aos necessitados.
A respeito do número de seus combates e de suas vítimas disse:
L: Não posso dizer ao certo o número de combates em que já estive envolvido. Calculo, porém, que já tomei parte em mais de duzentos. Também não posso informar com segurança o número de vítimas que tombaram sob a pontaria adestrada e certeira de meu rifle. Entretanto, lembro-me perfeitamente que, além dos civis, já matei três oficiais de polícia, sendo um de Pernambuco e dois da Paraíba. Sargentos, cabos e soldados, é impossível guardar na memória o número dos que foram levados para o outro mundo.
Sobre as perseguições e fugas deixou claro:
L: Tenho conseguido escapar à tremenda perseguição que me movem os governos, brigando como louco e correndo rápido como vento quando vejo que não posso resistir ao ataque. Além disso, sou muito vigilante, e confio sempre desconfiando, de modo que dificilmente me pegarão de corpo aberto. Ainda é de notar que tenho bons amigos por toda parte, e estou sempre avisado do movimento das forças. Tenho também excelente serviço de espionagem, dispendioso mas utilíssimo.
Seu comportamento mereceu alguns comentários bastante francos:
L: Tenho cometido violências e depredações vingando-me dos que me perseguem e em represália a inimigos. Costumo, porém, respeitar as famílias, por mais humildes que sejam, e quando sucede algum do meu grupo desrespeitar uma mulher, castigo severamente.
Perguntado se deseja deixar essa vida:
L: Até agora não desejei, abandonar a vida das armas, com a qual já me acostumei e sinto-me bem. Mesmo que assim não sucedesse, não poderia deixá-la, porque os inimigos não se esquecem de mim, e por isso eu não posso e nem devo deixá-los tranquilos. Poderia retirar-me para um lugar longinguo, mas julgo que seria uma covardia, e não quero nunca passar por um covarde.
Sobre a classe da sua simpatia:
L: Gosto geralmente de todas as classes. Aprecio de preferência as classes conservadoras - agricultores, fazendeiros, comerciantes, etc., por serem os homens do trabalho. Tenho veneração e respeito pelos padres, porque sou católico. Sou amigo dos telegrafistas, porque alguns já me tem salvo de grandes perigos. Acato os juizes, porque são homens da lei e não atiram em ninguém. Só uma classe eu detesto: é a dos soldados, que são meus constantes perseguidores. Reconheço que muitas vezes eles me perseguem porque são sujeitos, e é justamente por isso que ainda poupo alguns quando os encontro fora da luta.
Perguntado sobre o cangaceiro mais valente do nordeste:
L: A meu ver o cangaceiro mais valente do nordeste foi Sinhô Pereira. Depois dele, Luiz Padre. Penso que Antonio Silvino foi um covarde, porque se entregou às forças do governo em consequência de um pequeno ferimento. Já recebi ferimentos gravíssimos e nem por isso me entreguei à prisão. Conheci muito José Inácio de Barros. Era um homem de planos, e o maior protetor dos cangaceiros do nordeste, em cujo convívio sentia-se feliz.
Questionado sobre ferimentos em combate, contou:
L: Já recebi quatro ferimentos graves. Dentre estes, um na cabeça, do qual só por um milagre escapei. Os meus companheiros também, vários têm sido feridos. Possuímos, porém, no grupo, pessoas habilitadas para tratar dos ferimentos, de modo que sempre somos convenientemente tratados. Por isso, como o senhor vê, estou forte e perfeitamente sadio, sofrendo, raramente, ligeiros ataques reumáticos.
Sobre ter numeroso grupo:
L: Desejava andar sempre acompanhado de numeroso grupo. Se não o organizo conforme o meu desejo é porque me faltam recursos materiais para a compra de armamentos e para a manutenção do grupo - roupa, alimentação, etc. Estes que me acompanham é de quarenta e nove homens, todos bem armados e municiados, e muito me custa sustentá-los como sustento. O meu grupo nunca foi muito reduzido, tem variado sempre de quinze a cinquenta homens.
Sobre padre Cícero Lampião foi bem específico:
L: Sempre respeitei e continuo a respeitar o estado do Ceará, porque aqui não tenho inimigos, nunca me fizeram mal, e além disso é o estado do padre Cícero. Como deve saber, tenho a maior veneração por esse santo sacerdote, porque é o protetor dos humildes e infelizes, e sobretudo porque há muitos anos protege minhas irmãs, que moram nesta cidade. Tem sido para elas um verdadeiro pai. Convém dizer que eu ainda não conhecia pessoalmente o padre Cícero, pois esta é a primeira vez que venho a Juazeiro.
Em relação ao combate aos revoltosos:
L: Tive um combate com os revoltosos da coluna Prestes, entre São Miguel e Alto de Areias. Informado de que eles passavam por ali, e sendo eu um legalista, fui atacá-los, havendo forte tiroteio. Depois de grande luta, e estando com apenas dezoito companheiros, vi-me forçado a recuar, deixando diversos inimigos feridos.
A respeito de sua vinda ao Ceará:
L: Vim agora ao Cariri porque desejo prestar meus serviços ao governo da nação. Tenho o intuito de incorporar-me às forças patrióticas do Juazeiro, e com elas oferecer combate aos rebeldes. Tenho observando que, geralmente, as forças legalistas não têm planos estratégicos, e daí os insucessos dos seus combates, que de nada tem valido. Creio que se aceitassem meus serviços e seguissem meus planos, muito poderíamos fazer.
Sobre o futuro Lampião mostrou-se incerto, apesar de ter planos:
L: Estou me dando bem no cangaço, e não pretendo abandoná-lo. Não sei se vou passar a vida toda nele. Preciso trabalhar ainda uns três anos. Tenho de visitar alguns amigos, o que não fiz por falta de oportunidade. Depois, talvez me torne um comerciante.
Aqui termina a entrevista concedida por Lampião em Juazeiro.
Na despedida Lampião nos acompanhou até a porta. Pediu nosso cartão de visita e acrescentou:

L: Espero contar com os "votos" dos senhores em todo tempo!
OM: Que dúvida...
Como sabemos, Lampião, o "Rei do Cangaço", não viveu o suficiente para ver todos seus planos concretizados.

Fonte:
* http://www.sertaonet.com.br/lampiao/fala.html

4.10.09

Juazeiro x Crato: As Origens da Rivalidade

É comum ver um juazeirense e um cratense discutindo sobre qual cidade "é melhor". Em jogos de futebol entre os clubes de Juazeiro do Norte (Icasa e Guarani), e o time do Crato, as provocações das torcidas muitas vezes são direcionadas às cidades. O que hoje parece ser uma disputa sadia, antes foi motivo de embates furiosos e, no auge da rivalidade, a região deixou de receber diversos empreedimentos porque os investidores temiam se instalar em uma cidade e sofrer boicote da outra.

O início da rivalidade remonta ao século XIX, quando, após os acontecimentos miraculosos já abordados por este blog, a Igreja Católica iniciou uma campanha difamatória contra Padre Cícero e o então distrito de Tabuleiro Grande. Para se ter uma ideia da dimensão dos ataques eclesiásticos, em agosto de 1909, o Bispo auxiliar Manuel Lopes, em pregação na cidade do Crato, declarou: "Povo nobre e altivo do Crato, peço permissão para falar sobre o povo imundo de Juazeiro, que vive guiado por Satanás". Em reposta à frase do Bispo, a população de Juazeiro decretou uma greve geral à economia do Crato, não recolhendo impostos, suspendendo a venda de produtos agrícolas e industriais, além do não comparecimento ao trabalho (caso daqueles que laboravam no Crato).

A partir daí, surgiu o segundo e principal motivo para a rusga: a questão político-financeira. O jornal "O Rebate", criado em julho de 1909 para defender a emancipação de Juazeiro, intensificou a campanha e passou a realizar pesados ataques aos chefes políticos do Crato. O crescimento vertiginoso de Juazeiro aumentou consideravelmente a arrecadação de impostos e oferta de mão-de-obra, razão pela qual a emancipação do distrito estava fora de cogitação por parte da Prefeitura do Crato.

O movimento emancipacionista ganhou força em 1910, quando Padre Cícero abandonou a posição de neutralidade e enviou carta ao Governador Nogueira Accioly, requerendo a autonomia política de Juazeiro. No mesmo ano, houve uma passeata em prol do movimento, reunindo cerca de 15 mil simpatizantes.

Em 22 de julho de 1911, Juazeiro se tornou independente do Crato. Os poderes públicos dos dois municípios passaram a disputar investimentos públicos e privados, o que como dito antes, trouxe mais malefícios que benefícios. Em 1914, com a Sedição de Juazeiro, o município do Crato serviu de base para as forças rabelistas, motivo que acirrou ainda mais os ânimos e levou juazeirenses e cratenses às vias de fato. Aliás, os confrontos mais impiedosos que se tem notícia acerca da Sedição, ocorreram no Crato.

Com o passar dos anos, o clima hostil entre as duas cidades foi se dissipando, embora infelizmente ainda teime em existir. É preciso ter em mente que, juntas, as cidades do Cariri tem mais chances de atrair investimentos e se desenvolver do que se continuarem remoendo antigas desavenças.

Bibliografia:
* MATIAS, Aurélio. O Poder Político Em Juazeiro Do Norte – Mudanças e Permanências – as Eleições de 2000. Juazeiro do Norte: Gráfica Nobre, 2008.
* TOLEDO, Roberto Pompeu de. Quem tem medo de Frei Damião?. VEJA, São Paulo-SP, ano 30, p. 134, jun 1997

Micael François